quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NA SOMBRA DO COMBOATÃ



      Para Donato Ribeiro de Souza
   
     Numa tarde quente de janeiro, quando de longe se ouvia o canto intermitente de uma cigarra, e o vento do levante trazia do alto de uma coxilha a poeira, o cheiro e o alarido de um rodeio, em que ginetes, gado xucro e redomões se entreveram num ritual de destreza e coragem, um velho de 86 anos, com os pés alquebrados mas de memória e olhos solertes, ia desfiando lembranças de um tempo já distante. Éramos três. Ele, sua idosa esposa e eu, sentados à sombra de um robusto comboatã, em frente da modesta casa de madeira em que vivia o casal. Havia uma chaleira e uma cuia de chimarrão, que perpassava de mão em mão.
     O velho já me contara muitas histórias do seu tempo de moço, mas esta foi a que mais me chamou a atenção. Notando meu especial interesse pelo relato, perguntou-me, sorrindo, se eu ia fazer uma décima (composição preferida dos antigos). "Não", respondi simplesmente. Mas ele deve ter percebido que eu tinha algo em mente. O velho gostava de fazer um preâmbulo em suas crônicas.
     -Papai sempre foi um homem de respeito. Respeitava e era respeitado. Criou 14 filhos - 6 homens e 8 mulheres, - e deu bom exemplo a todos. Não era de briga. Mas dentro de seu direito não arredava o pé. Nas noites de inverno a gente se reunia em roda de um fogo de chão, e ele contava os seus causos. Não puxava assunto de valentia. Não era do seu feitio.  Mas de vez em quando alguém pedia que ele contasse o sucedido com um lindeiro nosso, chamado Norato, fato esse que ocorreu quando eu era gurizote ainda. Ficou famoso no rincão por muito tempo.
     Uma vez papai e o meu irmão Claudino - o mais velho dos homens, que devia ter uns 12 anos na época, - foram buscar o gado para colocar na mangueira. Papai ia num tostado bico branco, e o mano num potro baio. Era já de-tardinha, e chegando no campo notaram que a metade do gado havia varado a cerca de derrubada, que era como a gente fazia na época: cortava as árvores e empilhava toras e galhos para fazer o cercado. Bom. Meu pai mandou que o Claudino levasse embora as vacas, e ele foi procurar o restante do rebanho. Varando por onde o gado tinha escapado, papai cruzou por uma plantação de milho, que estava toda pisoteada. E logo adiante encontrou seus animais repontados por dois homens a cavalo. Esses dois gritavam, e um deles, com um porrete desse tamanho (abrindo os braços o velho indicou uma braçada), dava bordoada na rabada das reses, fazendo os bichos berrarem de dor. Depois de uma paulada daquelas, o gado aperreia, não presta pra mais nada, só carneando. E umas vacas sangravam no úbere, pois tinham as tetas cortadas a facão. Papai, vendo aquela barbaridade, perguntou: "Pra onde levam meu gado?" "Vamos botar barra afora! Isso é reiúno! Não tem dono!" gritava Norato, montado num gateado. "Vou dar dono pra você agora!" papai disse. E mandou que eles parassem com aquela judiaria. Ernestão e Norato, que eram irmãos, filhos de um falecido compadre do papai, avançaram prontos para a briga. Ernestão empunhava o porrete e Norato tinha um três listras capaz de atorar um varote de guajuvira num talho só. Era canhoto e afamado no facão. Papai gritou: "Não se acheguem, não se acheguem!" Mas não adiantou. Então ele puxou da cintura uma pistola de dois canos, cartucho 28, e fez fogo - baiaau!!
     Norato, que estava mais perto, tapou-se de fumaça, e despencou do cavalo, que relinchava e batia as patas dianteiras contra o vento. E o facão deu voltas no ar antes de cair no chão. Ernestão, vendo o sucedido, picou cavalo. (Nesta altura, não sei por quê, tentei vislumbrar a pelagem de um cavalo em fuga, cujo dono fora capaz de abandonar aos pés do inimigo, um que era seu próprio irmão.)
     Papai apeou ainda de pistola na mão. Norato se rolava numa poça de sangue. Gemendo suplicava: "Não termine de me matar, por amor de Deus!" Tinha um olho ferido por um balim que havia atravessado pela nuca, e uma orelha arrancada da cabeça. "Não me mate!" "Eu não sou bandido", papai disse. "Não sou covarde. Mas se eu tivesse caído nas unhas de vocês, vocês me matavam. E pára de resmungar, senão te mato!"
    Ele ficou bem quieto. Papai colocou ele no gateado, e mandou que se agarrasse nas crinas do animal. E montado no tostado foi conduzindo pelas rédeas o cavalo do ferido. Chegando em frente da casa da mãe do Norato, que ficava logo ali, papai gritou: "Cuidem dele!" E saiu a trote.
    Se o homem morreu? Não, não morreu. Nem precisou de médico. Era curandor e se curou sozinho. Mas ficou troncho de uma orelha e com um olho vazado.
    Papai voltou pra casa e contou o que aconteceu. Juntaram-se os parentes e se prepararam para o caso de alguma vingança, pois além de Ernestão, o Norato possuía um primo que se chamava Capitão Hermes, valentão e chefe de bandidos. Naquela época tinha estourado uma revolta, e era muito comum a bandidagem invadir as casas e promover judiaria. Papai, cunhados e primos, com as famílias, dormiam no mato. Ele usava um 38 e agora dizia que não tinha medo de nada. Eram uns dez homens, todos bem dispostos. Mas não aconteceu nenhuma reação por parte da família do Norato. E logo a revolta acabou e aos poucos a calma foi voltando.
     Bom. Passado um belo tempo, minha irmã mais velha, a Gasparina, que já era casada na época, numa manhã perguntou pro papai se ela podia ir consultar com o Norato, pois fazia muitos dias que estava doente, e não havia jeito de melhorar. Era uma doença no sangue. Médico e hospital não existiam ali por perto, tudo era muito longe. Papai disse que não era a favor nem contra. Ficou neutro.
    Com o marido, Gasparina foi até a casa do Norato. Não é que ele atendeu e ainda mandou buscar à cavalo o remédio em Ijuí? Dali uns quinze dias ela já estava curada.
     E depois disso, ele apareceu lá em casa. Papai e ele fizeram as pazes. Tomaram mate juntos, e até deram risadas. Pois as duas famílias sempre tinham se dado muito bem.

    E na poeira do tempo restam os vestígios dos homens que tangeram suas vida, suas lutas, seus sonhos que vez em quando ressurgem nas histórias contadas ao redor de um fogo de chão, que insiste a crepitar entre as cinzas do esquecimento.


                                                   Giruá, 24/01/08.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O JOÃO-DE-BARRO E O MOSQUITO



      O Silva precisava de um pedreiro.
    - Eu sei de um, que trabalha bem e cobra muito pouco, informou o Schmitt.
    - Quem? quis saber o Silva.
    - O João.
    - Que João?
    - O João de Barro...
  O Silva também achou engraçado. Até uma risadinha deu, enquanto pensava...
   - O senhor, que é alemão, como se chama mosquito em seu dialeto?
     Ainda feliz por conta da 'pegadinha', o Schmitt nem desconfiou:
     - Mücke, Schnake, Moskito...
    - Das ist toll! Ich brauche nicht den Mücke rufen! (Que tal! Eu não preciso chamar mosquito!)
     - Ah, - espertou-se o Schmitt - ele vem sozinho, não é?
    - Doch! Kommen sie allein!! (Claro! Eles vêm sozinhos!!)

    (Moral: Certas informações, e informantes, não passam de simples contratempos.)