sexta-feira, 14 de novembro de 2014

ABRACADABRA



             Sofria de Alzeimer. Doença que afeta principalmente as faculdades mentais. "Ficou fora da casinha", diziam os parentes. Porém, para espanto dos mesmos, era capaz de se lembrar perfeitamente de fatos do seu tempo de rapaz, quando morava na roça. E muitas vezes se "entrega" ao contar alguma "arte" que aprontara. Também fala com certa frequência, e entusiasmo, que "amanhã vou me casar". Outra particularidade sua é a resistência ao banho. Não era fácil convencê-lo da necessidade do banho. No entanto, sua esposa achou uma maneira de "dobrá-lo": "Mas amanhã não é o dia do teu casamento"? Foi o jeito.
                Outra obsessão é o seu ímpeto de fugir. Muitas vezes, quando davam por sua falta, estava vagando pelas ruas, nas proximidades. Colocaram grades e portões no muro da frente. Um dia, sem que alguém percebesse,  pegou a chave, abriu o portão e saiu. Só o encontraram após duas horas de procura. A partir de então, instalaram dispositivo com controle remoto no portão grande, que dá entrada para o veículo da família. E quando o filho, que mora próximo, vem visitá-los, e se o velho se encontra perto à grade, aciona o controle escondido sob a roupa, e diz:
                    -Abracadabra!
                   O velho, um tanto admirado,  fica olhando o portão que lentamente vai se inclinando. Depois que o filho entra, e fala alguma coisa ao pai, voltando-se para o portão, ordena:
                   -Fechacadabra!
                 Numa feita, quando ia embora, depois de conversar por um bom tempo com sua mãe, o pai, que permanecera junto à grade desde que o filho chegara, o interpelou:
                 -Reni, temos que mandar lavar os ouvidos desse portão.
                -Ué,  por quê?
                -Eu falo "abracadabra" e ele não me ouve...

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

PERERECAS


   Dois velhos se encontram numa manhã em Catuípe. O primeiro estava caminhando quando avistou o segundo, que estava fazendo reparos numa calçada. E lasca:
   -Mas você é bobo... Ainda trabalhando. Eu tô aposentado. 
   -Se é pra ganhar uma mixaria, prefiro continuar trabalhando...
   -Mixaria... É que você pensa.
   -Mixaria, sim. Garanto que não dá nem pra cobrir uma perereca. E solta uma risadinha debochada.
  -Olha a mixaria. E saca do bolso um pequeno maço  de notas azuis, faz um leque na cara do segundo, que olha com desdém. -Dá pra cobrir umas quantas pererecas!
   -Cobre uma. E amanhã, daí? retruca o outro.
  -Daí que no mês que vem tem mais - e larga uma baita gaitada o aposentado. Depois, calmamente,  como quem acabara de ganhar uma aposta, coloca o dinheiro no bolso e, sem olhar para trás, se afasta...



sábado, 18 de outubro de 2014

FRANCAMENTE







Amargava numa pindaíba daquelas de vender a janta pra comprar o almoço. Chegou a pensar que tinha nascido no país errado. Mas aos poucos as coisas foram melhorando: o que era preto ficou cinza, e o que era cinza clareou. E há três anos deu uma bela guinada em sua vida: casa própria, carro na garagem, filhos na faculdade (através do ProUni), e por último, para ilustrar, até um cachorrinho de madame comprou pra mostrar no facebook... Certo, sopram ventos benfazejos em nossa pátria amada, e quem está esperto toca seu barco a contento.
Agora, cá pra nós, depois do sofrido e superado, precisava mesmo compartilhar figurinhas do Aécio, e ainda escrever que está se sentindo esperançosa com o dito-cujo?! *Frei heraus...

*Expressão alemã que equivale ao nosso "francamente", cuja pronúncia é "frai êr-áus".

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

NA PRESSÃO



       Profe Dalva foi pagar o aluguel.
       -Seu marido está?
       -Não, ele deu uma saída, mas já volta. O que seria?
       -Hoje vence o aluguel, e eu queria...
      -Quer acertar? Pode ser comigo mesma - alegrou-se a esposa do locatário.
      -Sim, mas antes vou mandar consertar o que foi acertado no  contrato, e que há meses vocês não deram jeito. Vou atrás de um eletricista, depois desconto os reparos no aluguel.
      -Não, não!...pode deixar que a gente manda arrumar. Vai pegar qualquer um, cobra mais caro. Conhecemos um que trabalha bem e não é careiro...
      -Então liga agora mesmo, porque estou cansada de esperar...
      -Sim, sim. Um momento. 
      Retira da bolsa o celular, consulta a agenda, chama. 
     -Alô, é o Fábio? Aqui é a Marisa, temos um serviço pra você. Pouca coisa, mas é urgente. Pode vir?...
      Desliga o aparelho, dirigindo-se para Dalva:
      -Daqui a pouco ele vai lá...
     -Pois então vou subir, assim que ele consertar volto para pagar o aluguel.
    Mal se passaram 15 minutos após ela chegar ao apartamento, tocaram a campainha: era o tão esperado eletricista...
      -Viram, meninas? dizia a professora para a classe,  uma turma de um curso profissionalizante. É assim que funciona: na pressão. Prevalecem porque a gente é mulher, é sozinha. Mas estou aprendendo a lidar...
       

terça-feira, 20 de maio de 2014

MARISA RI BAIXINHO








Marisa trabalha há muito tempo na casa de uma tradicional família de médicos e dentistas. Disposta, honesta e caprichosa, garantiu o posto. Mas naquele dia, na hora do almoço, estava diferente, fazia as tarefas com o pensamento distante. A patroa, que era a única que conversava com ela - os outros integrantes da família apenas davam ordens ou faziam pedidos,- notou seu jeito estranho.
-O que você tem, Marisa.
Ela, que voltava da área de serviço, com a roupa de cama nos braços, gaguejou:
-É... é nada...
-Bom, se não é nada...
-É... o meu sobrinho. Três noites que não dorme...
-E o que ele tem?
-Dor de dente... Acho que tem que arrancar... Se o doutor puder fazer isso, desconta do salário...
A patroa olha pro marido, que estava a seu lado. Ele suspende garfo e faca no ar, faz cara de quem consulta uma agenda, e solta:
-Hmmm... Tô lotado... Até o fim do mês. E além do mais faz tempo que não tô arrancando dente. Quem sabe a filha...
-Ah, não! Pra isso existe posto de saúde. E também estou sem vaga na agenda... repeliu de pronto a doutorazinha recém formada.
No outro dia Marisa chega um pouco mais tarde ao trabalho.
-Atrasadinha hoje, né dona Marisa? Tive eu mesma que preparar o café... desabafou a filha do patrão, que se preparava para sair.
-Levei o menino no posto...
-E aí?
-Consegui uma ficha... Arrancaram o dente.
-Eu não falei?... E é bom escovar os dentes, também...
-É o que eu falei pra ele... E Marisa riu, baixinho...
Riu porque mentiu. Pela primeira vez, depois de muitos anos, fez isso para alguém daquela casa. Com o que restara do ordenado anterior, pagou a um dentista para que acabasse com o sofrimento do guri. Riu porque não podia dizer a verdade, teve medo de enfurecer aquela gente, e porque, semi-analfabeta, não iria encontrar melhor serviço, e muito precisava daquele emprego que lhe permitia viver e ajudar sobrinhos, irmãos e cunhadas... Solteirona, não tinha filhos. Apenas teve um namorado, quando jovem, que foi pra longe, atrás de uma vida melhor; prometendo se conseguisse um lugar viria lhe buscar. E Marisa nunca mais teve notícias daquele que foi o primeiro e único homem com quem teve relações mais profundas, que a fez feliz e depois, aos poucos, fechar-se para o amor...
E Marisa, sozinha, lavando a louça do café, ria para si mesma... Ria das noites de insônia, dos dentes estragados, das agendas cheias, das promessas desse mundo...

AUDÁCIA












Estava lavando roupa quando escutou um barulho no portão. Foi ver. 
Vizinha, é aqui que arrumam televisão, perguntou um sujeito na calçada do passeio. É ali, respondeu ela apontando o dedo para um prédio na esquina. 
O homem agradeceu, e se afastou levando um aparelho nos ombros.
Ao meio-dia, quando foi assistir seu programa favorito, é que ela descobriu o tamanho da audácia: era a sua tv que o malandro tinha levado para 'conserto'!!







sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A IGREJA, A ESTRADA, A CHUVA



           A igreja.

      Fazia parte de uma congregação religiosa. E essa associação estava dividida. O que os dirigentes ordenavam, a maior parte dos adeptos não acatava. Até no culto era visível tal rebeldia. Enquanto o pastor dirigia a palavra, o público, em geral, destoava. Conversavam entre si, olhavam para os lados, e até sorrisos de escárnios esboçavam. 
      Fui designado pelo presidente a me dirigir aos insurgentes, a fim de chamar-lhes a atenção e inibir seus atos. Receberam-me com olhares hostis. Aos poucos, as pessoas que estavam sentadas mais próximas, no transcorrer do culto, foram se afastando, deixando-me isolado. Não me perturbei. Fiquei em meu lugar, prestando atenção ao ato religioso. Mas gradativamente, sem perceber, fui adormecendo. E quando acordei, estava totalmente só. Haviam colocado tapumes no salão (era uma construção antiga em madeira, onde antes servia para a realização de festas, bailes e reuniões de uma comunidade interiorana), de modo que eu me encontrava numa espécie de corredor. Impassível, sem mágoa ou tristeza, dirigi-me à porta, e saí.

         A estrada.   

      Interminável, e coberta de pó. Uma boa caminhada até a cidade. Respirei fundo, enchendo os pulmões da brisa morna, que trazia  o cheiro da terra e das plantas. E dei início à jornada. O céu, que antes era límpido e brilhante, ia ganhando o tom acinzentado da nuvens. Logo alcancei um homem atarracado, baixote, que aparentava ter uns 50 anos. Como eu queria conversar com alguém, diminui o ritmo dos passos. Segui ao lado daquele sujeitinho que falava pouco, mas que demonstrava simpatia, apesar de sua compleição um tanto rude. Suas vestes eram surradas e escuras. Íamos no meio da estrada, que serpenteava entre campos verdes a perder-se de vista. A certa altura o homenzinho contou-me que iam (iam? perguntei; sim, respondeu-me),  ele e sua mulher (estendendo o braço indicou uma pessoa que estava a uma distância de um 10 minutos de caminhada, à frente), visitar um homem que estava no hospital. Um sujeito que morava sozinho numa propriedade próxima a deles. E depois que falou, olhando para trás, disse vamos apurar que vem vindo chuva por aí, adiante tem uma tapera. Enquanto apressávamos, confidenciou-me que por ele não teria saído de casa naquele dia. E nem a sua mulher queria que ele fosse junto. Mas por que foi? perguntei. É que o trecho era longo e muito perigoso para uma mulher andar sozinha. Ela gosta desse homem que está no hospital, disse, melancólico. Acho que ela quer morar com ele. Diz que sou muito baixo pra ela. Mas se ela me deixar, reagiu, vou arrumar uma do meu tamanho...
    E quando a ventania nos envolveu, o homenzinho gritou, apontando para dois  imensos pés de bergamota, lá esta! Nada mais vi do que as dua árvores. Muito próximas, formou-se entre elas uma espécie de pórtico, em que o homenzinho desapareceu. Eu o imitei. E assim que passei por aquela estranha entrada, percebi que se tratava de uma pequena casa de madeira escondida, em ruínas, cujas portas e janelas tinham sido arrancadas. E lá estava a mulher que ia visitar o enfermo. Ao nos avistar, desvio seu olhar. Magra e alta, sua cabeça oval quase encostava no teto disforme do casebre. Tinha os lábios marcados por batom lilás, e nas faces, sob o pó, percebia-se o ruge avermelhado.

         A chuva.

      Após o vento, a chuva. Com força e violência. Era como se estivéssemos em um mundo submerso. Ao som de uma cachoeira. Ninguém falava. Olhava-se o vazio, o distante, por entre os vãos das janelas, que se foram. Estão casados há muito tempo? enfim puxei conversa. Um olhou para o outro, ninguém respondeu. Também sou casado. Casamento é muito bom... nos primeiros meses. Depois chegam as divergências. É a tempestade. Mas se o que nos une é forte e verdadeiro, a tempestade vai embora, vem o arco-íris. Que pode durar até a próxima desavença. Porque a vida é assim. Altos e baixos. Mas o pior é o tédio. Quando uma relação se desgasta pela monotonia. Corrói feito soda cáustica. É preciso ver o que está acontecendo. Refletir. Conversar é muito bom. E nunca se troca um velho amor por uma aventura qualquer... E quando o homenzinho ia abrir a boca, uma forte trovoada sacudiu as paredes da casa, e pela vidraça da janela vi a chuva escorrer, a escorrer como escorre há três dias sem parar... 
     A tv continuava ligada, mas o filme há muito havia acabado...