sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A IGREJA, A ESTRADA, A CHUVA



           A igreja.

      Fazia parte de uma congregação religiosa. E essa associação estava dividida. O que os dirigentes ordenavam, a maior parte dos adeptos não acatava. Até no culto era visível tal rebeldia. Enquanto o pastor dirigia a palavra, o público, em geral, destoava. Conversavam entre si, olhavam para os lados, e até sorrisos de escárnios esboçavam. 
      Fui designado pelo presidente a me dirigir aos insurgentes, a fim de chamar-lhes a atenção e inibir seus atos. Receberam-me com olhares hostis. Aos poucos, as pessoas que estavam sentadas mais próximas, no transcorrer do culto, foram se afastando, deixando-me isolado. Não me perturbei. Fiquei em meu lugar, prestando atenção ao ato religioso. Mas gradativamente, sem perceber, fui adormecendo. E quando acordei, estava totalmente só. Haviam colocado tapumes no salão (era uma construção antiga em madeira, onde antes servia para a realização de festas, bailes e reuniões de uma comunidade interiorana), de modo que eu me encontrava numa espécie de corredor. Impassível, sem mágoa ou tristeza, dirigi-me à porta, e saí.

         A estrada.   

      Interminável, e coberta de pó. Uma boa caminhada até a cidade. Respirei fundo, enchendo os pulmões da brisa morna, que trazia  o cheiro da terra e das plantas. E dei início à jornada. O céu, que antes era límpido e brilhante, ia ganhando o tom acinzentado da nuvens. Logo alcancei um homem atarracado, baixote, que aparentava ter uns 50 anos. Como eu queria conversar com alguém, diminui o ritmo dos passos. Segui ao lado daquele sujeitinho que falava pouco, mas que demonstrava simpatia, apesar de sua compleição um tanto rude. Suas vestes eram surradas e escuras. Íamos no meio da estrada, que serpenteava entre campos verdes a perder-se de vista. A certa altura o homenzinho contou-me que iam (iam? perguntei; sim, respondeu-me),  ele e sua mulher (estendendo o braço indicou uma pessoa que estava a uma distância de um 10 minutos de caminhada, à frente), visitar um homem que estava no hospital. Um sujeito que morava sozinho numa propriedade próxima a deles. E depois que falou, olhando para trás, disse vamos apurar que vem vindo chuva por aí, adiante tem uma tapera. Enquanto apressávamos, confidenciou-me que por ele não teria saído de casa naquele dia. E nem a sua mulher queria que ele fosse junto. Mas por que foi? perguntei. É que o trecho era longo e muito perigoso para uma mulher andar sozinha. Ela gosta desse homem que está no hospital, disse, melancólico. Acho que ela quer morar com ele. Diz que sou muito baixo pra ela. Mas se ela me deixar, reagiu, vou arrumar uma do meu tamanho...
    E quando a ventania nos envolveu, o homenzinho gritou, apontando para dois  imensos pés de bergamota, lá esta! Nada mais vi do que as dua árvores. Muito próximas, formou-se entre elas uma espécie de pórtico, em que o homenzinho desapareceu. Eu o imitei. E assim que passei por aquela estranha entrada, percebi que se tratava de uma pequena casa de madeira escondida, em ruínas, cujas portas e janelas tinham sido arrancadas. E lá estava a mulher que ia visitar o enfermo. Ao nos avistar, desvio seu olhar. Magra e alta, sua cabeça oval quase encostava no teto disforme do casebre. Tinha os lábios marcados por batom lilás, e nas faces, sob o pó, percebia-se o ruge avermelhado.

         A chuva.

      Após o vento, a chuva. Com força e violência. Era como se estivéssemos em um mundo submerso. Ao som de uma cachoeira. Ninguém falava. Olhava-se o vazio, o distante, por entre os vãos das janelas, que se foram. Estão casados há muito tempo? enfim puxei conversa. Um olhou para o outro, ninguém respondeu. Também sou casado. Casamento é muito bom... nos primeiros meses. Depois chegam as divergências. É a tempestade. Mas se o que nos une é forte e verdadeiro, a tempestade vai embora, vem o arco-íris. Que pode durar até a próxima desavença. Porque a vida é assim. Altos e baixos. Mas o pior é o tédio. Quando uma relação se desgasta pela monotonia. Corrói feito soda cáustica. É preciso ver o que está acontecendo. Refletir. Conversar é muito bom. E nunca se troca um velho amor por uma aventura qualquer... E quando o homenzinho ia abrir a boca, uma forte trovoada sacudiu as paredes da casa, e pela vidraça da janela vi a chuva escorrer, a escorrer como escorre há três dias sem parar... 
     A tv continuava ligada, mas o filme há muito havia acabado...

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O TRINCA-FERRO


             Barrancas do Rio Uruguai. Manhã de maio. Cerração. Uma ruazinha íngreme, quase ladeira. Um amontoado de prédios comerciais, nos dois lados da rua, disputando cada palmo de barranco, cada freguês. 
          Numa dessas lojas, um balconista, tendo avistado os berços de verga, se aproxima e me pergunta, com uma voz de criança:
           -Também faz gaiola pra passarinho? 
           -Por enquanto não, mas lembro de já ter visto alguma por aí. Pra revender? 
           -Não. Pro uso. Tenho viveiro.
           -Hã. Faz tempo?
           -Sim, desde pequeno. (Sorri.) Aliás, pequeno ainda sou, crio desde guri. 
          -Passarinhos exóticos?
          -Silvestres.
          -Não é arriscado?
          -Fica nos fundos de um sítio. E não levo qualquer curioso.
          -Tem muitos?
          -Curiosos?
          -Não, passarinhos...
          -Ah, uns quantos...Canários, pintassilgos, azulões, cardeais, e até um casal de faisão. Tenho também um trinca-ferro que me mandaram lá do Paraná. Um macho, novinho ainda. Não vendo nem por 200 reais. Eu faço assim (ergue o punho direito, e bate castanholas com todos os dedos), e o bichinho se agacha, pipila baixinho,  agitando as asas. Agora em setembro vai cantar. Sabia que perto de uma fêmea eles têm um canto, e se a gente retirar a companheira, eles mudam o canto? E um macho que nunca conheceu uma fêmea, canta melhor ainda? E esse nome, trinca-ferro, é por causa do seu canto, como se alguém estivesse malhando ferro?
        -Mas que tal!
      -Dou tudo pra ele: água, remédio, vitaminas... tudo. Logo vai cantar... E suas orelhas, rosadas e abertas, se enchem de uma felicidade incontida.
   -Nisso entra um sujeito atarracado e moreno, com ar de castelhano, sobraçando uma pastinha preta. O balconista vai atendê-lo, mas antes se vira pra mim: 
       -Se um dia fizer gaiola, me avisa, tá?
       -Tá.
   -Uma funcionária, gordinha e sorridente, me entrega o pagamento. Digo adeus, e saio.
      Aos poucos a rua vai se enchendo de sol, risos e vozes em  dialetos estrangeiros. A balsa já fez a primeira travessia da manhã. Pessoas entrando e saindo das lojas. Veículos passando rente às pessoas, carregados de móveis, material de construção, alimentos, etc., em movimentos lentos, ruidosos.
        Em uma outra rua, mais calma, lateral, passo em frente a uma 
ferraria, e escuto:
        -Táin! Táin! Táin! Alguém marretando metal em uma bigorna.
       Impossível não pensar no passarinho. Fico imaginando tal ave (me disseram que é semelhante a uma sabiá, porém um pouco menor), passarinho que talvez nunca venha a conhecer, uma dádiva da natureza, festejando o início da primavera, para deleite de uma única pessoa - seu dono. Um hino entre as grades de uma gaiola - não que eu faça! "Nem por 200 reais!" Por mim, quero imaginá-lo livre, a voar e a cantar com a sua alma terna de passarinho, para o encanto de muitas pessoas de corações generosos...

         
                                                            Junho de 2006.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

PITANGAS




     ( Porque a vida não é só trabalhar,
     tem que tirar fotos pra compartilhar.)
   
    Se você quando criança
    também curtiu felizes momentos
    debaixo de uma pitangueira,
    com certeza pode ler meus pensamentos...

domingo, 7 de julho de 2013

O TROTE





   -Boa tarde. É o Sr. Edgar Loureiro da Silva?
   -Sim, ele..- responde Edgar, um tanto apreensivo.
   -Aqui é o Leonardo, gerente da Loja Quero Mais. Tudo bem com o senhor?
   -Vai... se levando.
  -Então, sr. Edgar, o motivo da ligação é para lhe informar que constatamos um pequeno débito em seu nome, relativo ao mês de fevereiro último, e pedimos que o senhor, o quanto antes, dê uma passadinha aqui para...
   -Mas eu paguei tudo! Não devo nada pra vocês!
   -Um saldinho de apenas R$ 235,00...
   -Não, não devo nada! Vocês tão querendo me roubar!!...
  E estava Edgar prestes a explodir de raiva, quando escutou uma baita gargalhada...
   -O quê? Seu puto, é você?! Tá de telefone novo...
  "Leonardo" não parou de rir. Lembrava do feito em cima do amigo e ria, e ria... Até que às 19:30 tocou seu celular...
   -Ha, ha... Fala, "seu" Edgar...
   -"Leonardo", se lembra do valor que eu "devia" na loja?
   -Ah, sei lá... Chutei um quantia qualquer...
  -Pois é... 235. Agora adivinha quem acabou de ganhar 7 mil reais no jogo do bicho, apostando no 235?...
  Naquela noite "Leonardo" foi dormir mais cedo do que o costume. Nem seu programa favorito de pegadinhas na tv quis assistir...

    
        






domingo, 30 de junho de 2013

COMO VAI A POESIA?



       Para Delvair Dolores Giacomini

      Numa incerta e nublada manhã - seria agosto ou setembro? trinava um canário em algum galho, isso eu lembro,- seguia preocupado e de olho no relógio, a caminho da estação rodoviária, quando encontrei uma senhora que parecia ter saído de um livro ilustrado. Usava vestido longo e estampado, evocando a primavera. Suas unhas tinham a cor da flor da romã. Seus doces olhos douravam a esquiva manhã, e tudo numa calma impressionante. Não me contive. Perguntei:
        -Como vai a Poesia?
        Pra quê!
        
       Sensíveis cordas distendidas pelo tempo
       esperam apenas um leve sopro do momento...

      A Poesia? Ela não deixou por menos... de meia hora. Emoções são intraduzíveis, e pequena é a memória... e mesmo que eu quisesse reproduzir a grandeza daquele momento, em que alguém enclausurado pela miopia do dia-a-dia de repente recebe um jorro de luzes... como descrever o instante em que se abrem as portas de um outro mundo, num piscar de olhos? Outro universo, outras magias e encantos...
     30 minutos que eu não esqueço jamais. De início um tanto aflito, confesso. Mas depois, receptivo. Encantado.
      Resultado: não só não perdi o ônibus (algo ou alguém o reteve pelo caminho), como ganhei uma amiga inseparável: a Poesia.
     Tudo porque, numa incerta e nublada manhã perguntei, talvez não por perguntar, como vai a Poesia...



                                           Giruá, 30/09/07.
     
       

quarta-feira, 12 de junho de 2013

CANTIGA PARA CANTAR DEBAIXO DA CHUVA



                Meu bem
           eu não sei dizer
           se o que nos mantém
           é amor, é vício ou é amizade.
           Mas
           seja lá o que for
           posso me contar feliz
           dentro das possibilidades...
           E
           além do quê
           se estou longe de você
           estou curtido de saudades...

segunda-feira, 25 de março de 2013

A RAINHA DA NOITE




             Hoje a noite é toda dela. 
         Dela e da Lua.
         Hoje as sombras se calam.
         As horas escorrem... lentamente.
         Os sonhos ganham novas asas.
         Talvez amanhã de manhã ela já não esteja mais entre nós.
         Talvez a Lua a procure, em vão, em outro lugar.
         Talvez se evapore feito um sonho.
         Mas no breve momento que lhe é permitido brilhar
         (enquanto as crianças dormem e os adultos fazem planos).
         ela nos deslumbra em majestades.
         É a Rainha. Da Noite.
         
         

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NA SOMBRA DO COMBOATÃ



      Para Donato Ribeiro de Souza
   
     Numa tarde quente de janeiro, quando de longe se ouvia o canto intermitente de uma cigarra, e o vento do levante trazia do alto de uma coxilha a poeira, o cheiro e o alarido de um rodeio, em que ginetes, gado xucro e redomões se entreveram num ritual de destreza e coragem, um velho de 86 anos, com os pés alquebrados mas de memória e olhos solertes, ia desfiando lembranças de um tempo já distante. Éramos três. Ele, sua idosa esposa e eu, sentados à sombra de um robusto comboatã, em frente da modesta casa de madeira em que vivia o casal. Havia uma chaleira e uma cuia de chimarrão, que perpassava de mão em mão.
     O velho já me contara muitas histórias do seu tempo de moço, mas esta foi a que mais me chamou a atenção. Notando meu especial interesse pelo relato, perguntou-me, sorrindo, se eu ia fazer uma décima (composição preferida dos antigos). "Não", respondi simplesmente. Mas ele deve ter percebido que eu tinha algo em mente. O velho gostava de fazer um preâmbulo em suas crônicas.
     -Papai sempre foi um homem de respeito. Respeitava e era respeitado. Criou 14 filhos - 6 homens e 8 mulheres, - e deu bom exemplo a todos. Não era de briga. Mas dentro de seu direito não arredava o pé. Nas noites de inverno a gente se reunia em roda de um fogo de chão, e ele contava os seus causos. Não puxava assunto de valentia. Não era do seu feitio.  Mas de vez em quando alguém pedia que ele contasse o sucedido com um lindeiro nosso, chamado Norato, fato esse que ocorreu quando eu era gurizote ainda. Ficou famoso no rincão por muito tempo.
     Uma vez papai e o meu irmão Claudino - o mais velho dos homens, que devia ter uns 12 anos na época, - foram buscar o gado para colocar na mangueira. Papai ia num tostado bico branco, e o mano num potro baio. Era já de-tardinha, e chegando no campo notaram que a metade do gado havia varado a cerca de derrubada, que era como a gente fazia na época: cortava as árvores e empilhava toras e galhos para fazer o cercado. Bom. Meu pai mandou que o Claudino levasse embora as vacas, e ele foi procurar o restante do rebanho. Varando por onde o gado tinha escapado, papai cruzou por uma plantação de milho, que estava toda pisoteada. E logo adiante encontrou seus animais repontados por dois homens a cavalo. Esses dois gritavam, e um deles, com um porrete desse tamanho (abrindo os braços o velho indicou uma braçada), dava bordoada na rabada das reses, fazendo os bichos berrarem de dor. Depois de uma paulada daquelas, o gado aperreia, não presta pra mais nada, só carneando. E umas vacas sangravam no úbere, pois tinham as tetas cortadas a facão. Papai, vendo aquela barbaridade, perguntou: "Pra onde levam meu gado?" "Vamos botar barra afora! Isso é reiúno! Não tem dono!" gritava Norato, montado num gateado. "Vou dar dono pra você agora!" papai disse. E mandou que eles parassem com aquela judiaria. Ernestão e Norato, que eram irmãos, filhos de um falecido compadre do papai, avançaram prontos para a briga. Ernestão empunhava o porrete e Norato tinha um três listras capaz de atorar um varote de guajuvira num talho só. Era canhoto e afamado no facão. Papai gritou: "Não se acheguem, não se acheguem!" Mas não adiantou. Então ele puxou da cintura uma pistola de dois canos, cartucho 28, e fez fogo - baiaau!!
     Norato, que estava mais perto, tapou-se de fumaça, e despencou do cavalo, que relinchava e batia as patas dianteiras contra o vento. E o facão deu voltas no ar antes de cair no chão. Ernestão, vendo o sucedido, picou cavalo. (Nesta altura, não sei por quê, tentei vislumbrar a pelagem de um cavalo em fuga, cujo dono fora capaz de abandonar aos pés do inimigo, um que era seu próprio irmão.)
     Papai apeou ainda de pistola na mão. Norato se rolava numa poça de sangue. Gemendo suplicava: "Não termine de me matar, por amor de Deus!" Tinha um olho ferido por um balim que havia atravessado pela nuca, e uma orelha arrancada da cabeça. "Não me mate!" "Eu não sou bandido", papai disse. "Não sou covarde. Mas se eu tivesse caído nas unhas de vocês, vocês me matavam. E pára de resmungar, senão te mato!"
    Ele ficou bem quieto. Papai colocou ele no gateado, e mandou que se agarrasse nas crinas do animal. E montado no tostado foi conduzindo pelas rédeas o cavalo do ferido. Chegando em frente da casa da mãe do Norato, que ficava logo ali, papai gritou: "Cuidem dele!" E saiu a trote.
    Se o homem morreu? Não, não morreu. Nem precisou de médico. Era curandor e se curou sozinho. Mas ficou troncho de uma orelha e com um olho vazado.
    Papai voltou pra casa e contou o que aconteceu. Juntaram-se os parentes e se prepararam para o caso de alguma vingança, pois além de Ernestão, o Norato possuía um primo que se chamava Capitão Hermes, valentão e chefe de bandidos. Naquela época tinha estourado uma revolta, e era muito comum a bandidagem invadir as casas e promover judiaria. Papai, cunhados e primos, com as famílias, dormiam no mato. Ele usava um 38 e agora dizia que não tinha medo de nada. Eram uns dez homens, todos bem dispostos. Mas não aconteceu nenhuma reação por parte da família do Norato. E logo a revolta acabou e aos poucos a calma foi voltando.
     Bom. Passado um belo tempo, minha irmã mais velha, a Gasparina, que já era casada na época, numa manhã perguntou pro papai se ela podia ir consultar com o Norato, pois fazia muitos dias que estava doente, e não havia jeito de melhorar. Era uma doença no sangue. Médico e hospital não existiam ali por perto, tudo era muito longe. Papai disse que não era a favor nem contra. Ficou neutro.
    Com o marido, Gasparina foi até a casa do Norato. Não é que ele atendeu e ainda mandou buscar à cavalo o remédio em Ijuí? Dali uns quinze dias ela já estava curada.
     E depois disso, ele apareceu lá em casa. Papai e ele fizeram as pazes. Tomaram mate juntos, e até deram risadas. Pois as duas famílias sempre tinham se dado muito bem.

    E na poeira do tempo restam os vestígios dos homens que tangeram suas vida, suas lutas, seus sonhos que vez em quando ressurgem nas histórias contadas ao redor de um fogo de chão, que insiste a crepitar entre as cinzas do esquecimento.


                                                   Giruá, 24/01/08.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O JOÃO-DE-BARRO E O MOSQUITO



      O Silva precisava de um pedreiro.
    - Eu sei de um, que trabalha bem e cobra muito pouco, informou o Schmitt.
    - Quem? quis saber o Silva.
    - O João.
    - Que João?
    - O João de Barro...
  O Silva também achou engraçado. Até uma risadinha deu, enquanto pensava...
   - O senhor, que é alemão, como se chama mosquito em seu dialeto?
     Ainda feliz por conta da 'pegadinha', o Schmitt nem desconfiou:
     - Mücke, Schnake, Moskito...
    - Das ist toll! Ich brauche nicht den Mücke rufen! (Que tal! Eu não preciso chamar mosquito!)
     - Ah, - espertou-se o Schmitt - ele vem sozinho, não é?
    - Doch! Kommen sie allein!! (Claro! Eles vêm sozinhos!!)

    (Moral: Certas informações, e informantes, não passam de simples contratempos.)
      

     

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

ENTRE O DISCO E A TELA



      Numa manhã de inverno nós a encontramos, enrodilhada entre a cerca e o disco de arado semi-encravado no chão que serve de limpa-pés quando se vai à horta nos dias de chuva. Veio assim como se dissesse vocês já têm dois, o que custa ter mais um? Ou uma?
     Porém havia um porém: achávamos que dois cães eram mais do suficientes, e que três seriam demais. E de pronto a devolvemos à rua, de onde viera, possivelmente abandonada à noite por gente  de outra cidade que aqui soltava cachorro como quem despeja entulho num aterro.
     Pois bem. No cair da tarde daquele mesmo dia, aparece ela no portão, como a insistir vocês já têm dois...
   Levamo-na para bem longe, fora da cidade, para que  encontrasse abrigo em alguma granja, ou sítio.
    Bom. Dois dias depois, também numa manhã, enrodilhada entre o disco e a tela, toda orvalhada e tremendo de frio e de fome, com os olhos a suplicar, quem estava lá?
    Aí não teve outro jeito, senão lhe dar casa, comida, vacina e um nome: Mel.
    Só.


                                                26.01.13.

sábado, 26 de janeiro de 2013

A ENCRUZILHADA


                                     ( Foto da posição depois de 13- ..., P3TR.)
    
     4ª e penúltima rodada do 1º Torneio Aberto de Cruz Alta, Rs, 28 de janeiro de 1990. Jogando com as brancas, eu precisava vencer naquela rodada para melhorar minha pontuação no torneio. Meu 'contrincante' era um desses jogadores que 'ya había jugado sus partidas'. Estava bem colocado na competição e acabara de efetuar...
    13- ..., P3TR.
   Bueno. Findada a fase da abertura, a partida adentrava para o meio-jogo. Ambos os lados já haviam rocado, as brancas em uma mínima vantagem posicional a custa de um peão de centro.  Diante o último lance negro, as brancas estavam agora em frente de uma encruzilhada: ou recuavam o bispo ao encontro da dama, ou até  a casa 4TR, ou trocavam-no pelo cavalo, ou...
    14- BxP!!!
   A ruptura. Nos esportes, nas artes e na vida, a sorte costuma sorrir para aquele que não teme ousar. E no xadrez, um lance desconcertante tem um efeito psicológico devastador. Premido pelo tempo (nas disputas oficiais o uso e observância do relógio são obrigatórios), é angustiante a busca pela melhor estratégia defensiva sob um ataque-surpresa na ala do rei.
   14- ..., PxB.
   Forçado.
   15- DxP, C2T.
   Um monarca seminu às voltas com uma dama contrária e feroz, quase sempre é prenúncio de tragédia. O cavalo intenta proteger seu rei, ao mesmo tempo em que libera a diagonal para o bispo e impede o avanço do cavalo inimigo via 5CR.
   16- T3D.
   Em cena, a artilharia pesada.
   16- ..., TR1R.
   Um lance que prende o cavalo e ameaça dar mate.
   18- T3C+, B4C.
   19- TxB+, CxT.
   20- DxC+, R1T.
   21- T4R.
   Para arrematar a partida.
   21- ..., P3B.
   22- T4T+, D2T. 
   23- C7B++ (xeque-mate).

   Um desenlace com a fascinante leveza que lembra  um esboço arquitetônico formatado com as cartas de um baralho. 
   
    

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O SABIÁ E OS CHOPINS



                                              

       Ivo viu a uva. E um sabiá-do-campo também. Talvez Ivo não tenha dado a mínima importância ao que viu. Mas para o sabiá foi um grande achado. Ela (sim, é uma fêmea), tem dois filhotes. Famintos e pretos.  Será que ela não vê que eles são tão diferentes?  Não desconfia que os chopins foram ao seu ninho, deram sumiço aos seus ovos e lá deixaram os deles, para que a sabiá pensasse que nada de mais havia acontecido durante a sua ausência? Sabe-se lá! A sabiá tem a cor inocente da palha. Os chopins, a da negra esperteza. 
       E as criaturinhas pedincham. O tempo todo. Chilreando, batem as asas e o bico, não lhe dão tempo  ou trégua nem pra pensar.  E ela, pra cima e pra baixo, porque as malandrinhas - já bem crescidas,- não param de pedir: mais uva! mais uva!
       E a sabiá, outra vez, a disputar as bagas da videira com os agitados azulões, as infatigáveis abelhas, as implicantes vespas negras e outros insetos, porque a vida é isso: uma eterna luta. E um aprendizado.

                                                                   
                                                                       
                                                                    Girurá, 07/01/13.