sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O TRINCA-FERRO


             Barrancas do Rio Uruguai. Manhã de maio. Cerração. Uma ruazinha íngreme, quase ladeira. Um amontoado de prédios comerciais, nos dois lados da rua, disputando cada palmo de barranco, cada freguês. 
          Numa dessas lojas, um balconista, tendo avistado os berços de verga, se aproxima e me pergunta, com uma voz de criança:
           -Também faz gaiola pra passarinho? 
           -Por enquanto não, mas lembro de já ter visto alguma por aí. Pra revender? 
           -Não. Pro uso. Tenho viveiro.
           -Hã. Faz tempo?
           -Sim, desde pequeno. (Sorri.) Aliás, pequeno ainda sou, crio desde guri. 
          -Passarinhos exóticos?
          -Silvestres.
          -Não é arriscado?
          -Fica nos fundos de um sítio. E não levo qualquer curioso.
          -Tem muitos?
          -Curiosos?
          -Não, passarinhos...
          -Ah, uns quantos...Canários, pintassilgos, azulões, cardeais, e até um casal de faisão. Tenho também um trinca-ferro que me mandaram lá do Paraná. Um macho, novinho ainda. Não vendo nem por 200 reais. Eu faço assim (ergue o punho direito, e bate castanholas com todos os dedos), e o bichinho se agacha, pipila baixinho,  agitando as asas. Agora em setembro vai cantar. Sabia que perto de uma fêmea eles têm um canto, e se a gente retirar a companheira, eles mudam o canto? E um macho que nunca conheceu uma fêmea, canta melhor ainda? E esse nome, trinca-ferro, é por causa do seu canto, como se alguém estivesse malhando ferro?
        -Mas que tal!
      -Dou tudo pra ele: água, remédio, vitaminas... tudo. Logo vai cantar... E suas orelhas, rosadas e abertas, se enchem de uma felicidade incontida.
   -Nisso entra um sujeito atarracado e moreno, com ar de castelhano, sobraçando uma pastinha preta. O balconista vai atendê-lo, mas antes se vira pra mim: 
       -Se um dia fizer gaiola, me avisa, tá?
       -Tá.
   -Uma funcionária, gordinha e sorridente, me entrega o pagamento. Digo adeus, e saio.
      Aos poucos a rua vai se enchendo de sol, risos e vozes em  dialetos estrangeiros. A balsa já fez a primeira travessia da manhã. Pessoas entrando e saindo das lojas. Veículos passando rente às pessoas, carregados de móveis, material de construção, alimentos, etc., em movimentos lentos, ruidosos.
        Em uma outra rua, mais calma, lateral, passo em frente a uma 
ferraria, e escuto:
        -Táin! Táin! Táin! Alguém marretando metal em uma bigorna.
       Impossível não pensar no passarinho. Fico imaginando tal ave (me disseram que é semelhante a uma sabiá, porém um pouco menor), passarinho que talvez nunca venha a conhecer, uma dádiva da natureza, festejando o início da primavera, para deleite de uma única pessoa - seu dono. Um hino entre as grades de uma gaiola - não que eu faça! "Nem por 200 reais!" Por mim, quero imaginá-lo livre, a voar e a cantar com a sua alma terna de passarinho, para o encanto de muitas pessoas de corações generosos...

         
                                                            Junho de 2006.

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