sábado, 1 de setembro de 2012

O QUARTO


           
       
           Numa casinha de ripão e tramela
        uma menina queria um quarto somente dela.
        Porque
        na escola onde estudava
        as coleguinhas com muito gosto cantavam:
        Meu quarto é assim
        grande e arejado
        foi decorado 
        especialmente pra mim...
        Tudo o que eu quero tenho lá,
        melhor lugar no mundo não há.
        Tanto que a menina, constrangida,
        um dia também cantou:
        Meu quarto é assim...
        mas depois ela chorou.
        Porque
        seu pai, um simples ferreiro
        por mais que trabalhasse 
        nunca juntava dinheiro.
        E a mãe, coitada, em casa fazia o que podia
        mas dinheiro, dinheiro ela desconhecia.
        E a menina chorou, 
        tanto chorou que seus prantos alcançaram os céus.
        E o Bom Velhinho, ouvindo aquele lamento,
        apiedado, alisando a longa barba cor de pergaminho,
        lascou:
        Bueno, mas o que é um quarto pra quem fez o mundo em   seis dias?
        E se os pais, por mais que labutem
        não conseguem atender a essa pequena  reivindicação,
        que a meu ver é simples e justa, 
        pensemos então...
        E pensando, pensando, o Bom Velhinho
        encontrou uma forma bem natural 
        de realizar o sonho ardente da menina:
        instituiu o prodigioso e mais-que-oportuno
        programa social: MEU QUARTO, MINHA VIDA.
        Neste, se inscrevem os pais de toda  criança 
        que sofre e é discriminada 
        por não ter um cantinho 
        simples que seja que possa chamar de  MEU QUARTO.
        
        E assim, preenchidos os requisitos legais,
        em poucos dias o quarto (e uma ajeitada na casa) se fez,
        para a alegria da menina que hoje é feliz.
        E na escola, quando acontece alguém cantar
        Meu quarto é assim...
        ela apenas sorri...
        sem dor.

        
                                            Janeiro/2007


        
        

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O COBRADOR





-Tem lugar lá nos fundos, gente. Vamos dar mais um passinho no corredor - implorava com voz chorosa o cobrador deu um ônibus lotado até às goelas.
A cada parada, mais gente subindo que descendo.
-Por favor, pessoal, mais um passinho no corredor...
Começaram os resmungos. No corredor, em pé, muitos não obedeciam. Um grita: "Ponham mais um carro nesse horário!" (09:45, de Santa Rosa a Santo Cristo.)
Outra parada. Desce um, sobem dois.
-Gente, vamos colaborar. Mais um passinho...
Foi aí que um menino de 6 a 7 anos, espremido no corredor entre duas senhoras de peso, não se conteve:
-Mas que homem mais enjoado!
Uma gargalhada geral sacode o velho e surrado ônibus. Mas o cobrador, decerto já curtido de xingamentos e reclamações, permanece inabalável.
E o carro seguia devagar, quase parando. E mesmo sob protestos, a cada parada ia inchando, feito o  nosso planetinha, onde  quando morrem dois, nascem três. Vamos colaborar, gente. Tem lugar lá nos fundos...


                                                           Maio de 2007.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

MEU VELHO


Para Jesus da Costa Lyra


Neste segundo domingo de agosto, Dia dos Pais, fui ver meu velho. Ele nunca deu lá grande importância a flores, mas mesmo assim levei-lhe um buquê de crisântemos brancos. Com as flores, ofertei-lhe meu coração, meus olhos e um Pai Nosso que de memória sei aos pedaços. 
Dia l0 deste mês ele teria feito 87 anos. Faria, porque faleceu num trevo da rs 344, numa manhã nublada de domingo, nove de novembro de 2003. Ele, um velho caminhoneiro, que nunca se envolveu em acidente, foi atropelado por um carro de passeio. C'est la vie, diria Juremir (Machado da Silva). Meu velho sempre dizia que preferia ter uma morte rápida, sem sofrer e fazer sofrer. Cheio de viço, aos 78 anos, foi ao encontro do  seu algoz  pedalando sua velha e inseparável  companheira para pequenos passeios. 
Neste domingo de agosto havia vento norte, e um sol entristecido e morno. Flores e vasos caídos. Algumas sepulturas limpas e enfeitadas. Outras, como que abandonadas. É que  muita gente mal suporta o próprio fardo da vida. Quando muito trazem uma flor e um balde de água para seus entes queridos, em dia de finados.
Meu pai, quando morava em um sítio, tinha um vizinho com quem gostava de conversar; e ajudavam-se mutuamente. Por obra do acaso, e de um infarto ocorrido  alguns dias antes do infortúnio do meu pai, esse senhor hoje descansa a poucos passos do velho.
As virtudes, e também os defeitos, no transcorrer do tempo se convertem em hábitos. E estes possuem um poder impressionante. Entre outras bondades, meu velho cultuava o hábito  da partilha. Seria capaz de dar a camisa que estava vestindo se algum necessitado assim lhe pedisse. Daí, não é de estranhar que uma parte das flores e algum vaso que deixamos pra ele, na próxima visita encontramos no túmulo do seu eterno vizinho. Vejo que meu velho continua o mesmo. E afinal, o que é um punhado de flores pra quem, em vida, nunca ligou pra isso?...

.....
O Velho Caminhoneiro
na Divina Pousada
vai viver na lembrança
de quem vive na estrada.

                                                  

domingo, 22 de julho de 2012

PACIÊNCIA TEM LIMITE!








Chega! Basta. Já perdeu a graça. Intraduzíveis a dor  e a angústia de quem, por um motivo qualquer, tenha   de  abrir o nosso jornal de sábado. Tudo começou assim feito pegadinha. É possível que de início alguém tenha encontrado alguma graça, de mau gosto, é certo. Mas o desconforto foi crescendo, e o que era talvez doce logo desadorou-se. Pode-se dizer que hoje é melhor ficar alienado com relação ao noticiário local. Bem, aí você teimou, e o que aconteceu? De imediato, depara-se com um sujeito com a maior cara de pau,  entre uma estrela e uma cruz! Um camarada que no meio da semana  você acabara de topar em alguma esquina, ele perguntou como vai, você respondeu vou levando, e você?   ele responde se melhorar estraga, depois a conversa resvala para o futebol, e ele arremata, enquanto vai se afastando, nesse domingo vamo com tudo pra cima deles! E na sexta... desiste?! Assim, no mais!? 
Gedult Grenze hat!* diria dona Gerta, que era alemã e despachada (outra que me deu um baita susto). Amanhã vou ter com o prefeito.  Que o pleito é pra ontem. Estamos próximos das eleições,  aproxima-se    a época das bondades. Que o prefeito acabe de vez com essa brincadeira doentia. Que elabore um projeto de lei, ou algo assim, e o remeta em regime de urgência à Câmara de vereadores, com os seguintes artigos:
Art.1º Que a comunidade seja organizada em grupos: família, amigos etc, à feição do Facebook. 
Art. 2º Que a ninguém seja dado o direito de  morrer sem o aviso prévio ao grupo a que pertença.
  Parágrafo único. Somente com o consentimento UNÂNIME do grupo será aceito o pedido de alguém que, por qualquer motivo alegado - certeza  que nunca vai acertar na Mega-sena, desencantou-se no amor, não acredita que seu time vá disputar a Libertadores, descobriu que é portador de doença grave, ou simplesmente presa de puro enfado,- deseje partir dessa para o ignorado. 
Temos leis pra tudo, não é?  Que seja essa uma que o atual prefeito vá se orgulhar por muito e muito tempo. E qual o vereador que, por mais obtuso ou despeitado que seja, cometerá a loucura de votar contra um projeto  de tal envergadura?
E assim espero dar minha humilde contribuição para que  os sobressaltos das  manhãs de sábado sejam algo enfim superado...

*Paciência tem limite.
                                                           

quinta-feira, 5 de julho de 2012

ODORICO

De repente o pacato Odorico apareceu de olho roxo. Quem fizera aquilo e por quê? A vizinhança estava tomada pela urticária. 
Dono de um mercado e açougue, fizera promoções, gastara com propaganda na rádio local, mandara distribuir folhetos promocionais de porta em porta; e pra quê?   Pouco  
retorno obtivera. Agora, por conta de um acidente, aquele fluxo de curiosos comprando qualquer coisa para disfarçar, e conferir de perto o tamanho do estrago. Os mais endêmicos não se continham:
-Ué, Odorico... Levou um coice de porco?
-Não, o caso foi diferente...
No início dissimulara com óculos escuros. Ante a inesperada insistência, escancarou o incidente sem o tapume das lentes.
-Não me diga que apanhou da mulher, Odorico...
-Não. O caso foi sério - repetia ele, atrás do caixa, passando as compras da clientela, sem esconder um leve sorriso. Sabia que o mistério se convertera em alma do negócio. E que em time que esta ganhando não se deve mexer...

                                                    
                                                       Outubro/2006                    

sexta-feira, 29 de junho de 2012

TOBI

                             

       Divina é a Rosa
       De perfume  embriagante,
       Festejada pelos poetas
       Desejada pelos amantes.
       O diabo são os espinhos...
       E como Tobi sabe disso!
       Para visitar uma namorada
       Procurou ele um caminho.
       Entre a cerca e a roseira
       Logo deu  um jeitinho...
       Por que a paixão é um fogo
       Que consome de mansinho...  
       E assim lá chegando
       A sua amada se emocionou:
       Tobi levava uma rosa
       Na orelha que sangrou!...
       Divina é a Rosa.
       O diabo são os espinhos...


                        
                                    
                                  Maio/2012

sábado, 23 de junho de 2012

OLHA O ROQUE!


Era só ele chegar no portão, à tardinha, cansado do trabalho que o papagaio, enorme, verde, vermelho  e velho, numa gaiola de arame, pendurada numa travessa da varanda de uma casa de madeira, feito alarme, disparava:
-Olha o Roque! Olha o Roque!
Ele ficava feliz, retribuia aquelas boas-vindas trocando a água, repondo algum alimento e fazendo um carinho rápido no recepcionista; e assim  esquecia  um pouco da fadiga do dia.
Depois entrava na casa, a mulher quase sempre na limpeza e arrumação, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, etc. Casados há um bom tempo, não tinham filhos. Nem gato, nem cachorro. Só o papagaio. Que era o que mais falava naquela casa de quatro cômodos.
Uma vez, porém, não se sabe por quê, o louro não avisou quando Roque abriu o pequeno portão, aliás um pouco mais cedo do que a hora habitual. E foi naquele dia que ele flagrou sua mulher na cama com o vizinho, que era gordo e não conseguiu escapulir pela janela...
E Roque ficou só. Nem tão só, porque na prisão sempre tem alguém querendo saber  do papagaio. E Roque a repetir, como se nada tivesse a ver com ele, as três palavras amargas que também usa  para informar sobre o amante da ex-mulher: "Aquele já era."


                                                Março/2009


sexta-feira, 15 de junho de 2012

NEGRO



                                       

                                                




 (Poesia regional para declamação.)


Num bolicho em minha terra
-lá na Boca da Picada,*-
entre outros malevas*
um tal de Negro
se encontrava.
Tomando a canha* de espera,
uma encrenca farejava,
com os olhos de uma fera,
em seu canto espreitava.

Era domingo de tarde,
depois de uma chuva braba,
foi lá na minha terra,
-lá na Boca de Picada.

Quem se lança na peleia
-na mesma regra do dado,-
tem na Sorte uma parceira
mais a Morte a seu costado.
Por que a alma que anseia
é um potro mal-domado,
pra comprar a dor alheia
o Negro pagava dobrado!
 
Era domingo de tarde,
depois...

Quando a coisa encrespou
o Negro puxou da pistola
-que deu um tiro e engasgou,-
s'embolaram lá fora...
Na sombra do oitão
taparam o Negro de adaga.
Entre o ferro e a parede
sua alma se entregava...
Sem  ajuda do irmão
que correu da empreitada,
se não fosse uma mulher
-que gritou de supetão:-
não matem o desgraçado
na porta da minha casa!
o Negro virava...
assombração.

Era domingo de tarde...

Uma hora depois
-em outra freguesia,-
por que ninguém fez
o que o Negro pedia,
ele mesmo pegou
uma faca bem afiada,
-dois dedos que balançavam-
o próprio Negro decepou.
E os pedaços pra bem longe
por uma janela atirou!...

Era domingo de tarde...

No rincão inda é lembrada
como a história terminou:
um pano o Negro levava
na mão que estropiou,
e atirava pela estrada
com a pistola que falhou,
atirando ele gritava:
pra espantar a raiva...
e a dor.

Era domingo de tarde
depois de uma chuva braba,
cheirava marcela pelos campos,
gritava saracura pelas canhadas,
no recanto da minha terra
-lá na Boca da Picada.


                                              Junho/2008



*Boca da Picada: comunidade interiorana de Santo Ângelo, município gaúcho.
 Maleva:  sujeito brigão, mal-encarado.
 Canha: cachaça, pinga.

(Este entrevero realmente aconteceu, há 46 anos, aproximadamente.)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Pro pai? Pro esposo?

     




     Mãe e filha entram num mercado. Um rapazinho, filho do proprietário, se aproxima, tímido, cortês, com as espinhas da idade.
    -Posso ajudá-las?
    -Queria ver uma sandália...- responde a filha.
    -Pra homem, pra mulher...
    -Pra homem, presente...
    -Pro pai, pro esposo?...
    -Pro pai...
    Aproximava-se o dia dos pais.
    -Aqui, ó - indica uma prateleira. -Que número seria?
     (Por cortesia, não revela-se o número que ela  responde.)
    Escolhido o calçado (azul, para um gremista confesso), o atendente insiste:
   -E pro esposo, não vai nada?
   -Já comprei.
    Dirige o olhar para a outra:
   -A senhora, também vai levar um presente?
    A outra repete: "Já comprei."
    Retorna à primeira:
   -Falar em esposo- em tom reservado, enquanto prepara o pacote de presente, - o seu não é um assim-assim , que gosta de política?
   -gosta de política....
   -Pois é, ele vem aqui de vez em quando, descasca bergamota e fala, fala de política com o meu pai...
   -Sim, é esse mesmo!
   -Mas ele é... assim, já é bem maduro, não é?
   -Sim, peguei ele pra terminar de criar...
    Risadas. O rapaz fica encabulado. Porém, não desiste:
   -Mas já deve ter uns 50, não?
   -46.
   -E a senhora?...
   -18.
   Ele a observa. Faz cara de espanto. Cara de quem esta calculando. Estala o resultado:
  -Nossa! Esse mundo tá perdido!
  -Tava brincando. Tenho 31...
  -Mas mesmo assim... É...
   Quando elas vão saindo, o rapaz, com cara de quem pisou na bola:
  -Não contem nada pra ele do que  falei, tá?
  -Pode deixar.
   Pois a mulher, chegando em casa, não se aguenta, conta com todos os detalhes e ainda tira um sarro da cara do marido. Ele balança a cabeça, ensaia  um sorriso, e numa voz que não lembra ninguém a não ser ele mesmo, contra-ataca:
                
             E pensar que era você,
            que vivia chorando por mim... 


                                                               Agosto/2006.

sábado, 2 de junho de 2012

A LUA E A PIPOCA











             
             


                Era noite de São João
                - céu escuro feito goela -
                eu fritava grão de milho
                num colosso de panela...
 
                De repente uma explosão
                - que chacoalhou a Terra -
                e uma baita pipoca
                escapou pela janela!!!

                Procurei pelo quintal,
                com ajuda de uma vela,
                mas nenhum sinal
                da que fugiu da panela.

                     
                            ***

                Tanto tempo se passou
                - inda lembro como era -
                nunca vi outra pipoca
                tão imensa quanto aquela.

                Toda vez que vejo a Lua
                - eu desconfio dela : -
                não será aquela pipoca
                que escapou pela janela?...

               

                                    


                                               Junho/2006
                            







             



         







          


            
         

                     
                         

sexta-feira, 25 de maio de 2012

NUMA SEXTA-FEIRA DE OUTONO

    

      Meia tarde de uma sexta-feira de outono. Pelo vão de uma janela  assistia,  sem  qualquer interesse, o vento norte balançar  os grande leques de  folhas  de um enorme  guarapuvu. O céu estava limpo e azul  como a superfície de um cristal. Apesar do desconforto que sentia, o cansaço e o burburinho que reinava no recinto lotado me deixava entorpecido, e talvez adormecesse se não fosse uma voz estranha e grave que soou como à queima roupa: "Dá licença?"  
      Era um senhor apoiado numa bengala de metal. Cedi-lhe um lugar no banco, afastando-me um pouco. Sentou-se com uma certa dificuldade.
     -A gente, quando é velho não é fácil...
     -Ora...
      Acomodado, deu uma olhada ao redor.
     -Tá cheio... Faz tempo que esta aí?
     -Desde as dez da manhã.
     A minha cabeça latejava. O sol penetrava pelo vidro da janela alta e oval, e não restava lugar desocupado para evitá-lo. Além do mais, estava preocupado. Ao entrar na cidade, fui parado numa barreira  policial. Dois soldados da brigada faziam abordagem. Enquanto passava os documentos do veículo ao policial, perguntei-lhe se sabia me informar onde estavam... "Identidade não é preciso. Carteira de habilitação, por favor." "Ah, a carteira..." E procura daqui, procura dali, vasculhei na carteira de couro, nos bolsos da calça, da camisa, no porta-luva da camioneta, no vão entre os bancos; encontrei documentos, notas fiscais, recibos, extratos de banco, cartões de lojas, de banco, de telefone, pedaços de papéis com anotações mais diversas, mas a dita- cuja, nada. "Tanto papel, e o documento que interessa, nem pensar."
     O militar, alto e moreno, atrás dos grande óculos escuros, fez uma cara séria.
    -Olha, eu vim aqui pelo motivo que lhe falei, e trouxe meu tio, e na pressa devo ter esquecido de pegar a carteira, que ainda esta na validade.
     O soldado olhou  para o interior do veículo, observou o ancião, pensou um pouco, e pediu-me a identidade. 
     -Vou conferir mais tarde.
     Olhou mais uma vez para a placa do veículo (pois já havia feito anotação enquanto se aproximava). Devolveu-me a RG, e me liberou.
     -Segue até  a rótula, e dobre à direita. Três quadras adiante, é lá...
      Agradeci. Entrei no veículo, e segui.
     -Como esta quente aqui - disse-me o senhor sentado a meu lado, puxando a roupa com os dedos, numa  tentativa para melhor ventilar.
     -É...
     Notei que ele usava colete de lã marrom sobre uma camisa escura de manga comprida. Vestia calça social preta de linho, sapatos de cadarços e meias também pretas. No assoalho, junto aos pés, largara a bengala, com a ponteira de borracha apontando para  frente, sob o banco dianteiro. Devia beirar uns 70 anos, estatura média, cabelo grisalho, rente à nuca. Bigode curto e volumoso, olhos cor de terra, miúdos e irrequietos. Possuía o ventre um pouco avantajado. De perfil, dava a impressão de tratar-se de um policial aposentado.
    -Mora aonde? - me perguntou.
    -Sou de Jetiá.
    -Ah. Mora na cidade?
    -Sim.
   -Tenho parentes e propriedades por lá. Conhece fulano? E sicrano? (Balanço afirmativamente a cabeça.) O pai deles é meu primo. Uma família muito grande. Beltrano, seu filho, que é meu xará, e que hoje esta quebrado, me deve muito dinheiro. Eu tinha uma poupança num banco, e foi tudo pra ele. Mas não me importo. Não me faz falta. Estou passando os meus bens pros filhos e netos. Já tenho minha casa que mandei fazer no cemitério... (Olha-me de esguelha.) Deus deve ter existido... Mas não existe mais. O bem e o mal esta dentro da gente. Tudo que se faz, se paga. Eu tô pagando. Sou criminoso de seis mortes. O primeiro delito que cometi foi quando eu estava servindo o quartel em Alegrete. Era uma noite escura, em 1959. Dois marginais saíram de uns tubos de bueiro, e me atacaram. Era matar ou morrer. Eu estava armado e matei os dois. Não deu nada. Eu era cabo-enfermeiro e peixe do comandante do batalhão. O último que matei foi há pouco tempo aqui na cidade. Ele estava dentro do meu galinheiro. Saiu arrastado com um balim no pulmão, e foi morrer no hospital.
    -Algum de seus mortos lhe pesa?
    -Nenhum. Só matei o que não prestava. E o que não presta tem que morrer. Tá vendo aquele homem lá, de jaqueta preta, sentado na cadeira? (Aponta com a cabeça para um senhor já grisalho, de frente para o público.)
    -Sim.
    -Aquele matou o pai dele com uma paulada na cabeça. O velho não prestava. Bebia e incomodava a família. Não deu nada pro filho. Matou o que não prestava... (Faz uma pausa, suspira. Não de pesar, mas para tomar fôlego.) Não tenho medo de assombração. Sou excomungado do ventre. Nasci com seis meses. Meu padrinho foi um padre. Excomungado e protegido. Tenho armas. Mas tudo registrado.  Gosto de caçar, e de pescar. Ensinei muita gente da polícia a caçar. Derrubo uma marreca no vôo e um lebrão na corrida. Nunca errei um tiro. Delegado e sargentos são meus amigos. Dizem que caçador e pescador são mentirosos...
    -São os que têm mais causos...
    -Aprendi a contar causos em noites de velório. Você é de Jetiá... Conhece um curandor assim-assim? Ele é vivo?
    -Já morreu...
    -Era meu amigo... Jetiá foi a cidade que  mais tive mulher na minha vida. Já ouviu falar da Virgínia e suas três irmãs, que tinham zona na saída velha que vai pra Santo Ângelo?
    -Já ouvi falar...
    -Eu trabalhava de construtor. Fazia casas e ganhava bastante dinheiro. O que o pau não comeu aplicava em terras. Nasceu em Jetiá?
    -Em Itaqui, mas registrado em Jetiá. Até os oito anos me criei perto de Cristo Rei, interior de Santo Ângelo...
    -De Cristo Rei saí aos vinte anos, quando fui servir no Exército. Ouviu falar de Fulano, que tinha lá um bolicho? 
   -Não me recordo. Moramos lá de 61 até 68.
  -É, nessa época ele já tinha morrido... Conhece Colônia Medeiros, quem vai pra Catuípe? 
    -Já passei por lá...
    -Tenho lá trezentos hectares. Meu filho mais velho é que toma conta... Fiz muito vinho e cachaça. Ainda tenho alambique. Mas não lido mais com isso. Faz dois anos que não bebo. Desde que me deu o primeiro derrame. Mas um sobrinho meu, lá de Jetiá, levou cinco mil quilos de uva e fez um vinho muito bom nas minhas pipas...
    Nisso sentou-se, na ponta do banco que há pouco ficara vago,   um casal de idosos.
   -Esse aqui é meu vizinho - aponta com o polegar o caçador, indicando o senhor que recém chegara. -A gente chama ele de Tatai. É viúvo de duas mulheres. Agora juntou uma terceira pra colocar as calças nele, por que não pode fazer sozinho, já teve três derrames.
   Olhei cautelosamente para o casal e notei que o tal Tatai sequer moveu um olho. Talvez fosse  surdo, ou indiferente ao que falava seu vizinho. Quanto à sua companheira, também não se importou; aparentemente. 
   -Eu sou assim - continuou o ex-construtor, - sempre falo a verdade. Conheço todo  mundo aqui. De toda a minha família sou o mais velho. Nunca enganei ninguém. Só mulher. Eu chegava tarde de algum lugar, e se uma reclamava de alguma coisa, eu tirava pra fora e dizia: "Olha bem aqui. Tá faltando algum pedaço?"
    Percebi que três senhoras no banco da frente,  que antes cochichavam, começaram a balançavar-se, discretamente, num riso abafado.
   -Ah... A gente tem momentos na vida que nunca mais voltam... O senhor acredita em benzimento?
   -Acredito.
   -Dizem que mais vale a fé do que o pau da barca. E é verdade. Eu acredito. Não em "chapoeirão".* Agora, tem benzedor que cura mais do que doutor. Eu não tenho osso que não tenha sido quebrado. Tive pulmão perfurado. Pernas e braços quebrados. Um carretão carregado cruzou por cima de mim, sobre o peito. Mas dessa vez só me machucou o braço. (Com a mão esquerda toca o braço direito, logo abaixo do ombro.) Sou ruim e protegido. Mas não puxo briga com ninguém. Sou pelo que é certo.  E não tenho medo de assombração - arrematou ele, num tom velado em monocórdio, como se estivesse no confessionário, ou atrás de um palco fazendo a última leitura de um script.
   
   Surgindo por uma porta lateral do púlpido, envolto numa batina preta,  o pastor logo deu início ao ato litúrgico de corpo presente. E o senhor que se dizia renegado, quedou-se ante a voz de um jovem possante de cabelo louro, bem escovado, que num tom agudo, mas severo,  alçou suas admoestações sobre a superfície encrespada de cabeças contritas. E as advertências, feito pássaros de fogo, revoavam no alto da nave,  passavam pelas basculantes das janelas, elevavam-se  entre os roliços galhos do impressionante guarapuvu,  para então  diluirem-se   no azul da tarde, que lentamente se esvaía...        
   

                                                                      
                                                                    Maio de 2008.
  

*Charlatão.   
   

domingo, 13 de maio de 2012

SELMIRO


     Selmiro vende vassouras. Vassouras de palha. Vende, faz, e planta. Isto é, cultiva a cerda, de que é feita a vassoura.
     -Qué comprá vassora, vizinha?
     Alto, magro, melena amarelada a escorrer pela nuca, ele próprio fazendo lembrar um desses utensílios imprescindíveis na lida doméstica: a vassoura.
     Boné vermelho, camisa verde, bateu palmas no portão: Qué comprá vassora, vizinha?  A mulher foi lá, conferiu a mercadoria, perguntou quanto, ele respondeu alguma coisa.
     Enquanto ela voltava pra pegar o dinheiro, dei uma pausa no meu trabalho e fui ver de perto as vassouras que aquele sujeito delgado (não sabia que se tratava do Selmiro) balançava contra o azul da manhã de sábado.
     -Die Besen,*- murmurei ao me aproximar do portão.
     -Ja. Neue Besen kehren gut,**- e um largo sorriso pôs à mostra uma dentadura novinha em folha.
     -Aber gewiss,***- respondi. -Quanto?
     -Sete real cada uma.
     -As duas por doze?
     -Não, não posso. O prego e o arame um olho da cara. Mas por treze eu faço.
     Eram vassouras grandes, largas e rijas.  A costura bem apertada. Quando a mulher voltava com o dinheiro, avisei que íamos ficar com as duas.
     -Qual é seu nome? - perguntei, confesso, por perguntar.
     Numa voz áspera e fina, respondeu-me alguma coisa que, pela minha expressão, dever ter percebido que eu não tinha entendido direito. 
     -Selmiro. Com s, - esclareceu ele, como se eu tivesse confundido com Delmiro, Olmiro, ou sei lá. 
     -Selmiro com s, repeti, achando graça. -E mora aonde, Selmiro? Independência? Interior?
     -Sim. Perto da propriedade do pai do professor (cujo nome não recordo agora).
     -Você mesmo faz as vassouras?
     Ele próprio as fazia. Com a ajuda da mulher. E também plantavam (as cerdas).  compravam o cabo, prego, arame e barbante. O resto era com ele e sua esposa. E um outro largo sorriso de satisfação iluminou aquele semblante castigado pelo trabalho de sol a sol.
     -Agora a vizinha ali vai ficá pra otra vez...
     -O quê?
     Uma moradora do outro lado da rua ficara de comprar uma vassoura "na volta", porque o marido não estava, ele que tinha levado o dinheiro.
    -Não senhor. Não podemos deixar a vizinha sem vassoura.
     E devolvemos uma.
     Neste mundo conturbado e poluído, onde grassam  a ganância e o egoísmo, Selmiro (com s), mais sua esposa, produzem oportuníssimas vassouras. Sem prejuízo da graça e leveza, são reforçadas e consistentes, pré-requisitos fundamentais para esses instrumentos que promovem o almejado bem-estar doméstico. E custam apenas sete reais a unidade. Ou duas por treze. Não por menos, porque o prego e o arame "tá um olho da cara".


                                                Março/2009   
    
    
  *    - As vassouras.
  **  - Sim. Vassouras novas varrem melhor.
  ***- Certamente.   
      
   

terça-feira, 8 de maio de 2012

NA PRAÇA 10 DE AGOSTO

     Na Praça 10 de Agosto, em Santa Rosa, José Ercílio, com mais dois colegas, mantêm um ponto de taxi.
     Nas horas em que arrefece o movimento de passageiros (o que acontece na maior parte do dia), ficam com algum amigo ou conhecido contando causos para passar o tempo.
     Em pé na calçada, ou sentados em algum banco ao lado do passeio, desfrutam a sombra de um pé de jambo, que no
fim do inverno é carregado de frutas ácidas.
     -Tem gente que gosta - conta Ercílio, referindo-se ao fruto. - Colocam na cachaça. Aliás, pra misturar com
cachaça quase tudo serve. Tenho um compadre que mora
em São Luiz Gonzaga que é louco por  uma misturinha. O que você imaginar e o que nem imagina que é possível misturar com cachaça ele prepara  e oferece quando  alguém chega na casa dele. Só não peça caipirinha. Não quer nem ver limão. Diz que é muito prejudicial pra saúde. Quando ouvi isso, dei risada. Ele ficou sério e contou que quando era novo experimentou de tomar caipirinha na casa de uns parentes de uma namorada dele. E o homem foi fundo. Olha, virou um baita xaropão. Começou a importunar as pessoas, ofender,  deu um comichão no corpo do vivente, e não sossegou enquanto não deram uma sumanta de laço no  
lombo do compadre. Ficou uma semana de cama. No hospital, contou pro médico que fazia tempo que bebia 
mas nunca lhe fez mal a cachaça. Mas com limão tinha sido a primeira vez. Então o doutor falou: "O limão é que faz 
mal. E agora esta comprovado."

                                                     
                                                 Maio/2008    

domingo, 6 de maio de 2012

A PESCARIA DOS TRÊS COMPADRES







Três compadres resolveram pescar. Era um domingo, meia tarde, depois de um fabuloso almoço que teve carne assada, salada à vontade e muita cerveja. Só escuta.
O primeiro compadre, dono da casa, que é tarado por pescaria, convidou o segundo, que também é, que convidou o terceiro, que aceitou só para não fazer desfeita. Juntaram iscas, anzóis, umas de pinga e, deixando em casa mulheres e filhos tomando mate e beliscando guloseimas na sombra da varanda, lá se foram estrada afora num fiatzinho 147 preto, por sinal bastante judiado mas que levava no pára-choque traseiro a seguinte conclusão a que o dono chegara: Quando a galinha é boa o pinto não falha...
O motorista era o que estava menos bêbado: tinha tomado só 1/2 dúzia de cerveja. Era janeiro e fazia um sol de rachar. Tinham patrolado a estrada e havia muito pó e pedra solta. No carro, que pulava que nem cabrito quando foge, bebiam e davam risada. Só escuta. E lá pelas tantas, no meio de um cerro, o cabritinho tossiu, tossiu e se acrocou. Com um pé no freio e outro na embreagem, o motorista beliscava que beliscava na chave e o cabritinho nem-te-ligo. Tentou mais uma vez e nem sinal. Botou em ponto-morto, e veio de ré. Não deu outra: caíram numa baita sarjeta. Por sorte ninguém se machucou (Santo Onofre sempre acode bebum). E logo apareceu um trator. Rebocaram o cabritinho até a ponta do subidão. No lançante conseguiram dar arranque. E tocaram.

Dali uma distância pegaram uma estradinha que descia até uma biboqueira: era o caminho que conduzia ao rio Cascavel, onde um dos compadres dizia conhecer um pesqueiro que dava jundiá e taraíra em quantidades.
Debaixo de um timbozal atracaram o veículo, e apearam. Dividiram linhas, iscas e se enfiaram mato adentro. O sol já estava caindo e os passarinhos faziam algazarra.
Na beira de um poço ficou um compadre aqui, outro ali, e o terceiro mais distante, rio acima. Os peixes logo começaram a beliscar. E de vez em quando alguma corrida, mas taraíra ou jundiá, que é bom, nada. Então aquele que não sabia nadar, pra bem de usar um anzol de fisgar tilápia, resolveu procurar outro poço, que era mais profundo. Só escuta. E não adiantaram avisos dos companheiros. Por teimosia ou má conselho da malvada, o camarada desapareceu dentro de uma bossoroca que conduzia as águas da chuva até o rio. E mandou minhoca n'água. O terceiro compadre, que estava no alto, só olhava.
Escurecia. Sapos e rãs numa ladainha sem fim.
Então de repente, se ouviu um grito:
-Olha a cobra!
Aquele que estava lá embaixo se vira, e dá de cara (digamos assim) com uma quatiara de quase um metro, que já preparava o bote. O índio dá um berro, balança e -tchimbum!- na água. Pronto. Era só o que faltava! E agora, meu amigo. Saia dessa!  Só escuta. O homem se batia, gritava, afundava, se afogava, aparecia e sumia de novo. O outro, também apavorado, despencando pelo barranco gritava: Já vou! Já vou! E o terceiro compadre,  ouvindo aquele tendéu todo, achou que eles faziam aquele alarido por terem pego algum peixe extraordinário, e perguntava:
-É grande? É grande?
-Fulano caiu na água! Ajuda aqui! - gritou o segundo.
Deu um trabalhão, mas conseguiram fisgar o afogado pela cinta da calça, usando pra isso um varote de canela-de-veado. O vivente se salvou. Mas vomitou um tanque de água barrenta.
E já que estava escuro, e tinham esquecido de colocar querosene no lampião; e como não tinham pegado nada, e por estarem encharcados, resolveram voltar pra casa, antes que acontecesse o pior.
E na volta abriram a última de pinga e caçoavam do afogado: Mas era grande o peixe!... E quá, quá, quá!
E o cabritinho parecia que ia se desmanchar no cascalho, a estradinha iluminada por um único farol.
E assim encerramos a presente aventura dos três compadres, que retornaram sem peixe, é verdade, mas salvos e (quase) sãos.
Alguém poderá  perguntar: E a cobra, afinal, que fim levou? Mataram, fugiu? Mais o que aconteceu foi o seguinte: um dos compadres pretendia apenas dar um susto no outro; e a quatiara que este viu não passava de um pedaço de meia-calça enroscado num galho de  unha-de- gato. O que faz a cachaça...

                                               Dezembro de 2007

quarta-feira, 25 de abril de 2012

HISTÓRIA DE UMA DOR EM DÓ MAIOR








Era João filho de Maria, negra analfabeta cujo corpo vendia.
Menino João pelas ruas cresceu, o perigo e a fome
disputaram o Homem que Maria concebeu.
Levava a vida juntando sucata, tarefa ingrata
magoava seu coração.
Pequeno herói, ao findar do dia, cadê a Esperança?
Acaso existia? (Acaso existia?)
Pobre João, por achar talvez
que o Destino negara melhores searas,
queria viver na embriaguez.
(Na embriaguez?!)
Mas Deus é grande, e a tudo assiste,                       na  gravidade da hora enviou-lhe uma Senhora,
para que João, João desistisse.
Acertada incumbência, pois essa Senhora,
Mãe de Providência, assim lhe disse:
João meu filho, não caia nesse vício.
Não é solução, é desperdício.
Tenha paciência, neste mundo de ciência
alguma lhe dará maior benefício.
(Maior benefício!)
Ficou João sem saber o que dizer,
mesmo assim prometeu que não iria beber.
Sentiu-se bem diferente,
não sabia por que, mas estava contente.
(Estava contente!)
             
                 *********

Certa manhã João trabalhava,
e algo chamara a sua atenção:
uma carteira de bolso, toda orvalhada,
jogada no chão.
Nela encontrou somente um cartão
com  nome e telefone de um cidadão.
Como se fosse um apelo
João ligou bem ligeiro de um orelhão.
(Uma senhora atendeu, bastante aflita:
queria notícias do marido
que havia sumido sem deixar uma pista.
João respondeu que nada sabia,
apenas achara por ali sua carteira [quase] vazia.)
Avisaram a polícia. Um cativeiro
foi encontrado, e o senhor em questão
finalmente libertado.

                    *********

Nosso João foi comentário geral,
figura estampada em muito jornal.
Além do quê, recompensado:
uma vaga em curso de jardinagem,
pensou que era sacanagem
mas estava enganado.
(Estava enganado!)

                  *********

E assim a cada dor uma flor,
Deus transformou aquela vida sofrida
num grande jardim.
E assim a nossa história acabou,
olhai Deus agora pra outras histórias
de dor sem
                      fim.
                                              
                                                  08/2004