segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

ENTRE O DISCO E A TELA



      Numa manhã de inverno nós a encontramos, enrodilhada entre a cerca e o disco de arado semi-encravado no chão que serve de limpa-pés quando se vai à horta nos dias de chuva. Veio assim como se dissesse vocês já têm dois, o que custa ter mais um? Ou uma?
     Porém havia um porém: achávamos que dois cães eram mais do suficientes, e que três seriam demais. E de pronto a devolvemos à rua, de onde viera, possivelmente abandonada à noite por gente  de outra cidade que aqui soltava cachorro como quem despeja entulho num aterro.
     Pois bem. No cair da tarde daquele mesmo dia, aparece ela no portão, como a insistir vocês já têm dois...
   Levamo-na para bem longe, fora da cidade, para que  encontrasse abrigo em alguma granja, ou sítio.
    Bom. Dois dias depois, também numa manhã, enrodilhada entre o disco e a tela, toda orvalhada e tremendo de frio e de fome, com os olhos a suplicar, quem estava lá?
    Aí não teve outro jeito, senão lhe dar casa, comida, vacina e um nome: Mel.
    Só.


                                                26.01.13.

sábado, 26 de janeiro de 2013

A ENCRUZILHADA


                                     ( Foto da posição depois de 13- ..., P3TR.)
    
     4ª e penúltima rodada do 1º Torneio Aberto de Cruz Alta, Rs, 28 de janeiro de 1990. Jogando com as brancas, eu precisava vencer naquela rodada para melhorar minha pontuação no torneio. Meu 'contrincante' era um desses jogadores que 'ya había jugado sus partidas'. Estava bem colocado na competição e acabara de efetuar...
    13- ..., P3TR.
   Bueno. Findada a fase da abertura, a partida adentrava para o meio-jogo. Ambos os lados já haviam rocado, as brancas em uma mínima vantagem posicional a custa de um peão de centro.  Diante o último lance negro, as brancas estavam agora em frente de uma encruzilhada: ou recuavam o bispo ao encontro da dama, ou até  a casa 4TR, ou trocavam-no pelo cavalo, ou...
    14- BxP!!!
   A ruptura. Nos esportes, nas artes e na vida, a sorte costuma sorrir para aquele que não teme ousar. E no xadrez, um lance desconcertante tem um efeito psicológico devastador. Premido pelo tempo (nas disputas oficiais o uso e observância do relógio são obrigatórios), é angustiante a busca pela melhor estratégia defensiva sob um ataque-surpresa na ala do rei.
   14- ..., PxB.
   Forçado.
   15- DxP, C2T.
   Um monarca seminu às voltas com uma dama contrária e feroz, quase sempre é prenúncio de tragédia. O cavalo intenta proteger seu rei, ao mesmo tempo em que libera a diagonal para o bispo e impede o avanço do cavalo inimigo via 5CR.
   16- T3D.
   Em cena, a artilharia pesada.
   16- ..., TR1R.
   Um lance que prende o cavalo e ameaça dar mate.
   18- T3C+, B4C.
   19- TxB+, CxT.
   20- DxC+, R1T.
   21- T4R.
   Para arrematar a partida.
   21- ..., P3B.
   22- T4T+, D2T. 
   23- C7B++ (xeque-mate).

   Um desenlace com a fascinante leveza que lembra  um esboço arquitetônico formatado com as cartas de um baralho. 
   
    

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O SABIÁ E OS CHOPINS



                                              

       Ivo viu a uva. E um sabiá-do-campo também. Talvez Ivo não tenha dado a mínima importância ao que viu. Mas para o sabiá foi um grande achado. Ela (sim, é uma fêmea), tem dois filhotes. Famintos e pretos.  Será que ela não vê que eles são tão diferentes?  Não desconfia que os chopins foram ao seu ninho, deram sumiço aos seus ovos e lá deixaram os deles, para que a sabiá pensasse que nada de mais havia acontecido durante a sua ausência? Sabe-se lá! A sabiá tem a cor inocente da palha. Os chopins, a da negra esperteza. 
       E as criaturinhas pedincham. O tempo todo. Chilreando, batem as asas e o bico, não lhe dão tempo  ou trégua nem pra pensar.  E ela, pra cima e pra baixo, porque as malandrinhas - já bem crescidas,- não param de pedir: mais uva! mais uva!
       E a sabiá, outra vez, a disputar as bagas da videira com os agitados azulões, as infatigáveis abelhas, as implicantes vespas negras e outros insetos, porque a vida é isso: uma eterna luta. E um aprendizado.

                                                                   
                                                                       
                                                                    Girurá, 07/01/13.