terça-feira, 20 de maio de 2014

MARISA RI BAIXINHO








Marisa trabalha há muito tempo na casa de uma tradicional família de médicos e dentistas. Disposta, honesta e caprichosa, garantiu o posto. Mas naquele dia, na hora do almoço, estava diferente, fazia as tarefas com o pensamento distante. A patroa, que era a única que conversava com ela - os outros integrantes da família apenas davam ordens ou faziam pedidos,- notou seu jeito estranho.
-O que você tem, Marisa.
Ela, que voltava da área de serviço, com a roupa de cama nos braços, gaguejou:
-É... é nada...
-Bom, se não é nada...
-É... o meu sobrinho. Três noites que não dorme...
-E o que ele tem?
-Dor de dente... Acho que tem que arrancar... Se o doutor puder fazer isso, desconta do salário...
A patroa olha pro marido, que estava a seu lado. Ele suspende garfo e faca no ar, faz cara de quem consulta uma agenda, e solta:
-Hmmm... Tô lotado... Até o fim do mês. E além do mais faz tempo que não tô arrancando dente. Quem sabe a filha...
-Ah, não! Pra isso existe posto de saúde. E também estou sem vaga na agenda... repeliu de pronto a doutorazinha recém formada.
No outro dia Marisa chega um pouco mais tarde ao trabalho.
-Atrasadinha hoje, né dona Marisa? Tive eu mesma que preparar o café... desabafou a filha do patrão, que se preparava para sair.
-Levei o menino no posto...
-E aí?
-Consegui uma ficha... Arrancaram o dente.
-Eu não falei?... E é bom escovar os dentes, também...
-É o que eu falei pra ele... E Marisa riu, baixinho...
Riu porque mentiu. Pela primeira vez, depois de muitos anos, fez isso para alguém daquela casa. Com o que restara do ordenado anterior, pagou a um dentista para que acabasse com o sofrimento do guri. Riu porque não podia dizer a verdade, teve medo de enfurecer aquela gente, e porque, semi-analfabeta, não iria encontrar melhor serviço, e muito precisava daquele emprego que lhe permitia viver e ajudar sobrinhos, irmãos e cunhadas... Solteirona, não tinha filhos. Apenas teve um namorado, quando jovem, que foi pra longe, atrás de uma vida melhor; prometendo se conseguisse um lugar viria lhe buscar. E Marisa nunca mais teve notícias daquele que foi o primeiro e único homem com quem teve relações mais profundas, que a fez feliz e depois, aos poucos, fechar-se para o amor...
E Marisa, sozinha, lavando a louça do café, ria para si mesma... Ria das noites de insônia, dos dentes estragados, das agendas cheias, das promessas desse mundo...

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